terça-feira, 14 de março de 2017

Quando um “bom” pássaro é um mau sinal?

A observação de aves é movida pelo prazer que o comportamento de pássaros proporciona para o observador e pela possibilidade, as vezes, de ver algo novo, algo diferente. “Hoje vi um bicho bom” significa que vi uma ave inesperada, uma fora da rotina. E vi mesmo!  

Por Mario Cohn-Haft

Conversando com a minha esposa dentro de casa logo cedo, cortei o papo por achar que ouvi um som muito diferente. Podia ser? Shh, espera. De novo! Corremos pra rua, olhamos pra cima e lá estava, voando muito alto e gritando: uma curicaca!

A curicaca (Theristicus caudatus) é da mesma família do coró-coró, a dos ibis.  Vem expandido sua distribuição Rio Amazonas acima com a expansão do desmatamento e da pecuária na várzea.  O indivíduo sobrevoando a cidade quase certamente estava em busca de uma nova área de campo para pousar.  Foto: Anselmo d’Affonseca.

Hoje é 14 de março de 2017 e, que eu saiba, esse foi o primeiro registro de curicaca dentro da cidade de Manaus.  Mas já vimos chegando há tempos.  Essa espécie, que forrageia em lamaçais na várzea, é nativa do baixo rio Amazonas (e ambientes não florestais fora da Amazônia, como o Pantanal), mas vem subindo o rio acompanhando a criação de gado na várzea. No estado do Amazonas, a região de Parintins até Itacoatiara tem curicacas há décadas. Mas a subida acima da boca do rio Madeira é relativamente recente. Há alguns poucos anos vem aparecendo na área do encontro das águas e ensaiando subir o Solimões pelas costas do Iranduba e Curari.

Curicacas andam em pastagens, especialmente em áreas de várzea.  O som que ela faz se ouve de longe e, como outras aves, entrega sua presença mesmo quando não se consegue vê-la.  Ouça seu grito no link do Wikiaves. Foto: Anselmo d’Affonseca.

E ela é apenas uma de várias espécies de aves que seguem o mesmo padrão.  O maçaricão quero-quero, o patinho ananaí, o tucanuçu, o avoante, e o pica-pau-branco ainda são todos pássaros “bons” para a nossa região.  Ou seja, são raros porque acabaram de chegar.  Mas vem acompanhando a onda de desmatamento que aos poucos substitui a floresta nativa por ambientes abertos antropizados.  Se não conseguirmos controlar o desmatamento, logo os bichos “bons” e difíceis serão aqueles que são daqui mesmo, e já foram comuns.  Sem drama, só um alerta.  Basta prestar atenção nos pássaros para ver o nosso rumo.

Exemplos de outras espécies de aves de campos de várzea do baixo rio Amazonas que agora começam a subir o Solimões com o desmatamento.  A) quero-quero (Vanellus chilensis), aqui na nossa região também chamado de téu-téu ou maçaricão; B) ananaí (Amazonetta brasiliensis); C) tucanuçu (Ramphastos toco); e D) pica-pau-branco (Melanerpes candidus).  Fotos A-C: Anselmo d’Affonseca; D: Robson Czaban.

12 comentários:

Rita Mesquita disse...

Na hora a gente nem pensa nestas coisas, so fica muito feliz por ter a sorte de estar ali no meio da rua vendo esse bicho bonito passar e vocalizando! Mas agora, refletindo, é isso mesmo: um bicho "bom"que traz um sinal de alerta. Valeu, Mario!

Roda de Passarinho disse...

Puxa, mas este registro é inusitado! Temos percebido há anos os Phimosus infuscatus invadindo espaços do quero-quero, por exemplo, cada vez mais na Ilha de Santa Catarina e arredores. Estes bichos chegaram por aqui há aprox 10 anos. Estão bem instalados! Ortalis squamata, típico do litoral já sobe a Serra, inclusive.

Mario Cohn-Haft disse...

obrigado a quem comenta aqui, valorizando o blog. vou copiar uma troca de email com a fernanda rodrigues, que autorizou postar aqui:

On 14 Mar 2017, at 1:10 PM, Fernanda Rodrigues wrote:

Eu achei que estava "ouvindo vozes estranhas". Comentei: "gente, jurei ter ouvido um quero-quero". Esquece, isso não pode ser real. Para minha surpresa total.

Em 14/03/2017, à(s) 15:06, Mario Cohn-Haft escreveu:

pois eh, de vez em quando passa quero-quero gritando por cima das nossas casas, especialmente a noite! isso eh coisa dos ultimos anos pra ca.

Unknown disse...

Ótimo e perspicaz registro Mário! Obrigado!!

Venho notando também tanto em Manaus quanto em áreas remotas no rio Negro que já sofrem influências de queimadas e estradas...

E isso vale também para outros grupos taxonômicos.

Abs e tudo de bom

Durigan

. Nast . disse...

Muito bom o texto e registro, mas triste saber o porque da migração destes pássaros.

Unknown disse...

É , nem sempre o belo é bom sinal... Sinal dos tempos em que vivemos. Desrespeito a natureza

rhmatsushita disse...

É uma questão interessante... Por exemplo, o quero-quero ( Vanellus chilensis) começou a se expandir pelo estado do Acre por conta das pastagens e áreas desmatadas. Daqui um tempo não me surpreenderei com a chegada do anu-branco (Guira guira), que também​ ocupa esse tipo de nicho e que já ocupa localidades em Rondônia.

Unknown disse...

Deslocamentos são comuns entre as aves o que sempre fomentou a evolução das espécies. Acho cedo ainda pra um alarde mais significativo.

Mario Cohn-Haft disse...

dois comentarios de amigos no facebook de avistamentos anteriores: geise goes no final do dia anterior no tiradentes, e jefferson valsko de 2 sobrevoando e vocalizando na semana anterior, tbm na cidade. parece q acabou de chegar esses dias!

Cecilia Licarião disse...

É sempre bom ficamos atentos para as mudanças que estão ocorrendo! Parabéns pela postagem e pelo registro Mário!

Carina fogaca disse...

Essa manhã bem cedo,fui lá fora tinha dois em cima da minha casa ,mordendo minha antena,e muito grandes e lindos, daí fiquei Atucanada pra saber oque significaria e cai aqui nesse site ,interessante...

Unknown disse...

Gente adoro à natureza, respeito todos os animais mas à curicaca na época de acasalamento incomodam bastante, gritam o dia inteiro e fazem a maior sujeira embaixo das árvores!