quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

'Se eu pudesse dormir mais um pouquinho só'... ou 'O que acontece antes dos periquitos chegarem?'

Por Mario Cohn-Haft

Para quem se interessa em pássaros, e especialmente quem presta atenção no som dos pássaros para saber quais e onde estão, a hora que acorda faz toda a diferença. É possível escutar nas primeiras duas horas da manhã mais tipos diferentes de aves do que se detecta no restante do dia inteiro. Isso é porque a hora de pássaro cantar é de mãnha cedo. Mas mesmo nesse horário (que uns consideram ingrato), existe uma agenda sonora muito apertada e rígida. Tem pássaro que começa a cantar logo que o sol nasce e outros que esperam o ar esquentar um pouquinho antes de vocalizar. E existe em grupo seleto de espécies que só canta naquele primeiro lusco-fusco do dia, quando mal começou a clarear e o sol ainda não nasceu. Esses, se você não estiver acordado antes do sol mesmo, não vai notar talvez nunca.

O arapaçu-meio-barrado (Dendrocolaptes picumnus) se chama assim porque tem barras horizontais apenas na barriga e flancos, enquanto é listrado na cabeça e peito. Ele é bem raro na cidade, e aparece somente nas áreas perto de floresta mais extensa. Foto: Anselmo d’Affonseca.

O arapaçu-meio-barrado é um desses. Canta durante alguns minutos no pré-amanhecer (e não em todos os dias) e depois passa o dia se cuidando, sem soltar um pio. Hoje o escutei aqui de casa pela primeira vez há mais de uma década. Foi porque ele tinha sumido e agora voltou? Não sei. Só sei que hoje, se eu não estivesse em pé escutando na janela do quarto exatamente entre 05:33-05:37, teria passado batido. 

Os arapaçus são pássaros que ficam colados nos troncos das árvores, feito pica-pau.  Mas pica-pau costuma furar madeira a procura de brocas e construindo seus ninhos.  O arapaçu é uma ave mais delicada, conta com o trabalho de outras espécies, ou a própria podridão da madeira, para cavar seus ninhos em oco, e cata insetos na casca dos troncos, sem fazer grandes estragos. 

Arapaçus são da cor do tronco, marrom avermelhado e marcados com listras ou risquinhos, mais ou menos dependendo da espécie.  Alías, são duzias de espécies, super parecidas, melhor diferenciadas pelo canto mesmo.  Aqui no Acariquara, uma é comum—o arapaçu-de-bico-branco—e umas outras tres são bem raras mesmo, inclusive o nosso protagonista de hoje. Ele é de mata extensa de terra firme. Mal tolera o limite da cidade onde pode a qualquer momento se retirar para dentro da mata grande.  Aqui no nosso conjunto, suspeito que só aparece quando se aventura a sair um pouco da mata da UFAM.  E mesmo lá, de repente não mora continuamente; talvez só chega de vez em quando, expulso de onde morava e na busca de mais floresta da boa mesmo. 

O arapaçu-de-bico-branco (Dendroplex picus) é a espécie de arapaçu mais comum na cidade. Diferencia-se do outro pelo ventre todo listrado e o bico claro. Foto: Anselmo d’Affonseca.


Sorte a minha que hoje ele se dignou a passar pelo meu quintal e cantar umas poucas vezes até a chegada zoada dos periquitos na mangueira. E mais sorte a minha que eu estava acordado para ouvir.


Posfácio—Três dias depois da observação relatada aqui, no dia 5 de dezembro às 05:19, eu ainda deitado na cama, escutei um canto do arapaçu-meio-barrado. Não se repetiu ao longo da manhã. Os periquitos chegaram do seu dormitório no V8 às 05:41. O sol nasceu às 05:43.


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